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Notícia

“A Reforma da Previdência deixou 1,2 milhão de chilenos sem cobertura”, afirma Juliana Braga

Juliana Braga é docente de Direito da Universidade Católica de Pelotas (UCPEL) e autora do livro “Reforma Previdenciária – Neoliberalismo versus Direitos Sociais Previdenciários – Qual Caminho Desejamos Tomar? ” (Editora Juruá, 2018).


O ministro Paulo Guedes usa a Previdência chilena como exemplo para Reforma da Previdência brasileira. Você acredita que é um caminho a se seguir? Quais os problemas gerados por uma previdência privada baseada na capitalização individual?

Eu acredito que devemos, sim, olhar com atenção para o exemplo do Chile, entender a história da previdência chilena e aprender com a realidade vivida por sua população, entender o eles vivem hoje e o porquê. Seria esse o caminho que desejamos tomar? Esse é o futuro que queremos?

Para responder a essas perguntas, devemos, primeiramente, traçar um breve panorama histórico.

A partir da década de 70 se expandiu na América Latina o que se convencionou chamar de padrão neoliberal de desenvolvimento. Ele teve início justamente no Chile, ganhou impulso nos anos 80 e atingiu o seu auge nos anos 90, tornando-se predominante na região com o estabelecimento do chamado “consenso neoliberal” ou “Consenso de Washington”.

É possível afirmar que, nesse momento histórico, as pesquisas sobre as políticas públicas se deslocaram da análise do desenvolvimento e da expansão da proteção social do Estado em direção a uma ênfase na “crise” e na redução dos programas nacionais de bem-estar social, confirmando a imposição da cartilha neoliberal para os países latino-americanos, especialmente no que tange à economia política da reforma previdenciária, tendo em vista que diversos sistemas previdenciários públicos latino-americanos demandavam subsídios do Estado.

Assim, com o intuito de reduzir subsídios e norteado por economistas neoliberais interessados em reformar o sistema público, se iniciava um processo de privatização, sem esquecer que crises financeiras persistentes justamente corroem a confiança da população nos sistemas públicos.

Esse cenário parece ser o atual, não é mesmo? Duas décadas após o discurso se repete. E, dessa forma, a “onda neoliberal” de reformas na América Latina se iniciou no Chile, durante o regime militar de Pinochet. Milton Friedman – economista norte-americano expoente do movimento neoliberal e ganhador do o Prêmio de Ciências Econômicas em Memória de Alfred Nobel de 1976 – foi responsável por assessorar Augusto Pinochet na implantação da primeira e mais emblemática experiência neoliberal – o laboratório neoliberal – da América Latina nos anos 80 e 90. As primeiras medidas adotadas foram a privatização das empresas estatais chilenas e do sistema previdenciário. 

Vale destacar que a privatização ocorreu mesmo diante de uma taxa de crescimento real das arrecadações do sistema previdenciário chileno de 79% somente entre 1968 e 1972. Foi um fundo único para administrar os benefícios previdenciários, fixando um mecanismo geral de reajustamento e novos critérios para a concessão desses e, principalmente, reduzindo as taxas de cotização, retirando a participação do Estado e dos empregadores, de forma que os trabalhadores passaram a ter a responsabilidade de cotizar o correspondente a 10% de seus rendimentos mensais, através de depósitos em contas individuais de poupança administradas por fundos privados.

E os chilenos adotaram o novo sistema massivamente em razão de diversos motivos: da campanha publicitária agressiva e consistente à pressão exercida por alguns empregadores.

Os reflexos dessas políticas nas contas públicas foram quase imediatos, já que a mudança teve o efeito de reduzir de 34% para 22% o gasto público em relação ao PIB do país. Esse panorama serviu como incentivo para a implementação dos ideais neoliberais em outros países da América Latina e foi aclamado por Milton Friedman como um “milagre econômico”.

Nessa esteira, o caso chileno foi referência para rediscutir o setor e, inclusive, influenciou as recomendações do Banco Mundial, conforme relatório “World Bank”, de 1994.

No ano de 1999, o sistema previdenciário privado chileno cobria mais de 96% de todos os segurados, os quais apresentavam uma atitude positiva em relação ao novo sistema. Entretanto, passados cerca de trinta anos da privatização, em meados de 2007 o regime só cobria 55% da força de trabalho do país e tinha uma reposição média em relação ao último salário de apenas 44% (ou de 30% a 40%, segundo a CUT, a Central Unitária dos Trabalhadores do Chile).

A reforma chilena deixou 1,2 milhão de chilenos sem cobertura da previdência. Muitos trabalhadores foram simplesmente excluídos do sistema depois de sofrerem com o desemprego bastante alto nas décadas de 1980 e 1990.  Outros efeitos nefastos foram a concentração do mercado de administradoras de fundos de pensão que passaram a cobrar altas taxas de administração e carregamento entre muitas falhas de mercado jamais previstas pela ditadura de Pinochet, obviamente também nunca discutidas com a sociedade. Em 2008, sobrou para o Estado criar um Pilar Solidário para arcar, mais uma vez, com a seguridade social desses 8% da população que ficaram à mingua na velhice. Este retorno do Estado, por necessidade emergencial, reduziu consideravelmente o efeito fiscal da privatização da previdência.

A reportagem publicada pela de Revista Exame em 06 de março 2008 destaca como o índice de informalidade na economia do país era grande, e, sobretudo na área rural, havia um enorme contingente de pessoas que não faziam os depósitos com regularidade ou sequer participavam do sistema, que caso o cenário fosse mantido, um em cada dois chilenos não teria direito à pensão mínima em 2030.

Assim, o resultado da reforma da previdência do Chile foi equivalente a um verdadeiro terremoto. Metade da mão de obra ativa ficou sem nenhum tipo de cobertura. De 18 AFPS (Administradoras de Fundos de Pensão), o mercado concentrou-se em seis. As AFPS administram atualmente 220 bilhões de dólares, o equivalente a 75% de toda a economia chilena – o que obviamente inviabiliza o retorno ao sistema público.

Sob o aspecto social, o acesso à aposentadoria ficou restrito a apenas 60% da população adulta, criando uma faixa de cidadãos excluídos do benefício na velhice. O sistema de capitalização individual chileno atualmente paga 1.120.000 pensões de velhice, invalidez e sobrevivência, cujo valor médio é de apenas 205.000 pesos chilenos e com a contribuição de aposentadoria solidária do Estado é de 219.000 pesos chilenos. Em particular, se considerarmos as 336 mil pensões de velhice pagas pelas AFP, 91% estão abaixo de 156.000 pesos chilenos, equivalentes a 62% do salário mínimo nacional. Uma verdadeira catástrofe social, considerando que essa modalidade é a mais maciça em relação ao tipo de pensões pagas pelo sistema privado.

De acordo com a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o Chile ocupa o segundo lugar em desigualdade social entre os seus 35 membros. A renda dos 10% mais ricos é 26,5 vezes mais elevada do que a dos 10% mais pobres. A média da OCDE é de 9,5 vezes.

Os economistas Jonathan Ostry, Prakash Loungani e Davide Furceri publicaram um artigo na revista Finance & Development, editada pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), em junho de 2016, supreendentemente questionando os exageros dos 30 anos neoliberais, reconhecendo que, em vez de gerarem crescimento, algumas políticas neoliberais aumentaram a desigualdade e colocaram em risco uma expansão duradoura, sugerindo uma visão “mais matizada” dessas políticas.

Como se não bastasse, a redução no valor das pensões e aposentadorias está provocando uma onda crescente de suicídios no país. O Ministério da Saúde, em parceria com o Instituto Nacional de Estatísticas (INE), publicou estudo mostrando que entre 2010 e 2015, 936 adultos maiores de 70 anos tiraram sua própria vida. No caso dos maiores de 80 anos, em média, 17,7 a cada 100 mil habitantes recorreram ao suicídio. Isso levou o Chile à primeira posição entre número de suicídios na América Latina.

 

Estás acompanhando as manifestações no Chile? Como enxergas a relação entre essas lutas e as consequências de décadas de previdência privada por lá?

Acompanho as manifestações no Chile com muita apreensão – em razão das 18 vítimas contadas até o momento –, mas, ao mesmo tempo, com esperança de que a união e a luta do povo ajudem a melhorar as condições de vida da população chilena e a reduzir a extrema desigualdade social que assola o país.

Essa greve geral, seguida de estado de emergência e toque de recolher teve início com o aumento da tarifa do transporte público, mas segue justamente em razão de um sistema econômico e social injusto, que condena a maioria da população chilena a uma vida precária.

A última edição do relatório Panorama Social da América Latina, elaborado pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), a parcela de 1% mais rica da população chilena manteve 26,5% da riqueza do país em 2017, enquanto 50% das famílias de baixa renda representavam apenas 2,1% da riqueza líquida.

Segundo o Sistema de Contas Nacionais do Banco Central do Chile, no primeiro semestre de 2019, a dívida total das famílias chilenas é de 73,5% de sua renda disponível anual. Em 2003, esse valor era de 38%.                                                                                                                        

Assim, o povo chileno brada que o movimento não se dá tão somente em razão do aumento de 30 pesos chilenos das passagens de transporte público, mas em razão dos 30 anos de extrema desigualdade que assolam o país.

Diante disso, o presidente Sebastián Piñera anunciou no dia 22/10 um pacote de reformas sociais que inclui mudanças no sistema previdenciário (um aumento de 20% da pensão básica) e de saúde, aumento do salário mínimo ($350 mil pesos) e redução das tarifas de energia, bem como o aumento dos impostos para quem ganha mais de 8 milhões de pesos.

 

Como avalias a PEC 06/2019, a Reforma da Previdência brasileira?

A PEC 06/2019, “Reforma da Previdência” teve a tramitação concluída no Congresso no dia 23/10. Agora o texto aprovado será promulgado e as novas regras entram em vigor a partir dessa data – salvo as alíquotas de contribuição que passam a valer após 90 dias.

Eu, particularmente, avalio a reforma proposta através da PEC 06/2019 como desastrosa. Muito além da mudança dos critérios e requisitos para a concessão dos benefícios previdenciários e suas regras de transição, que estão sendo amplamente divulgadas e explicadas pela mídia, o que mais me preocupa é a desconstitucionalização de “questões paramétricas”, remetendo a decisão do governo (Executivo e Legislativo) para leis específicas – o que não vem tendo o destaque devido na mídia.

Segundo o texto final da PEC, a nova redação proposta para os artigos 40 e 201 da Constituição Federal estabelece que Lei Complementar, de iniciativa do poder Executivo – e não mais através de PEC com votação qualificada em dois turnos nas duas Casas do Congresso – estabelecerá os parâmetros do Regime Geral de Previdência Social (RGPS) e do Regime Próprio de Previdência dos Servidores (RPPS). Lembrando que esses parâmetros incluem idade de aposentadoria, tempo e valor de contribuição para a Previdência Social, cálculo do valor dos benefícios por aposentadoria, pensões por morte e aposentadoria por invalidez, bem como regras para equacionar desequilíbrios atuariais.

Ademais, considero preocupante a repetição do discurso de ênfase na crise, conforme já citei anteriormente, a implantação de projetos claramente neoliberais e, especialmente, o que o futuro reserva para a população brasileira. Não podemos esquecer que há poucos meses foi aprovada uma reforma trabalhista e que uma reforma da previdência da monta da operada aqui gera obviamente a falta de confiança no sistema público de previdência social.

Devemos relevar a importância dos benefícios previdenciários: de acordo com o IBGE, os benefícios pagos pela Previdência produzem impactos significativos no nível de pobreza da população brasileira, retirando da condição de pobreza cerca de 28,3 milhões de cidadãos – o que representa uma redução de 14,1 pontos percentuais na taxa de pobreza.

A aposentadoria representa um papel importante na renda dos idosos e sua importância cresce com a idade. De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS) o número de pessoas com idade superior a 60 anos chegará a 2 bilhões de pessoas até 2050; isso representará um quinto da população mundial. Segundo dados do Ministério da Saúde, o Brasil, em 2016, tinha a quinta maior população idosa do mundo, e, em 2030, o número de idosos ultrapassará o total de crianças entre zero e 14 anos.

Vi alguns defensores da reforma falarem: estou pensando nos nossos filhos. Será que este seria mesmo o momento de pensar somente “nos nossos filhos”? Antes deles não temos nós e nossos pais?

O Brasil, atualmente, se beneficia do chamado “bônus demográfico”, ou seja, menos crianças e idosos e mais jovens economicamente ativos (a pirâmide está em forma de pera). Isso deve durar até 2040 aproximadamente, quando a população idosa deve ser maior, com tendência ao desequilíbrio das contas da Previdência.

O crescimento da população em idade ativa (PIA) ainda se manterá até 2040, contudo, se a economia se mantiver recessiva, com a elevação do número de desempregados e empregos informais, gerará um comprometimento demográfico.

Então esse bônus demográfico no Brasil está condicionado pela gravidade do quadro da exclusão social. Isso é evidente quando constatamos que a maioria da nossa população jovem é pobre e os índices de desemprego ultrapassam 12%.

Lembrando que os países desenvolvidos, quando vivenciavam a atual fase demográfica do Brasil, tinham não apenas uma economia com crescimento sustentado, como também um Estado de Bem-Estar Social consolidado. O Brasil, pelo contrário, não registra taxas satisfatórias de crescimento da economia, assim como acaba de aprovar a “Reforma da Previdência”. Atualmente tudo indica que caminhamos para um cenário de maior desigualdade social e consequentes concentração de renda e aumento da pobreza, seguindo o exemplo do Chile – que sequer pode ser considerado modelo diante de toda análise feita até aqui.

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