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Notícia

Livros Indesejáveis

Censura e perseguição ideológica a obras literárias são marcos anti-democráticos


Texto publicado no Jornal Voz Docente


Estímulo à delinquência, à perversão, ao comunismo. Quando se fala em censura a livros, as palavras-chave se tornam recorrentes e familiares, rasgando o tecido da história. Poderíamos estar na Salvador de 1937, quando militares queimaram, a mando de Getúlio Vargas, 1827 livros “propagandistas do credo vermelho”. Ou quem sabe nos primeiros anos da ditadura de 1964, quando o ministro da Educação, Flávio Suplicy de Lacerda, organizava pessoalmente o expurgo de bibliotecas, queimando livros de Darcy Ribeiro e Paulo Freire a Sartre e Eça de Queiroz. 


Estamos, todavia, em 2021. Ano em que a Fundação Cultural Palmares, primeira instituição federal dedicada à proteção, preservação e promoção da cultura negra, publica um relatório de “livros inadequados”. Sob o comando do diretor Sérgio Camargo, ávido por polêmicas conservadoras para se manter sob os holofotes do bolsonarismo, a fundação indicou que 54% dos seus títulos (totalizando cerca de 5 mil) violam sua missão.


É o próprio Camargo quem abre o documento, e registra: “Todas as pessoas de bem ficarão chocadas ao descobrir que uma Instituição mantida com o dinheiro dos impostos, sob o pretexto de defender o negro, abriga, protege e louva um conjunto de obras pautadas pela revolução sexual, pela sexualização de crianças, pela bandidolatria e por um amplo material de estudo das revoluções marxistas e das técnicas de guerrilha”. 


A historiadora Maria Luiza Tucci, da USP, relata que acompanhou o caso com indignação. “Chamo atenção para o perigo que representa instituições públicas, detentoras de memória, violentarem nossos direitos”, pondera. Para Tucci, que é autora do livro Minorias Silenciadas, história da censura no Brasil (2002), o discurso de defesa de uma missão focada na cultura negra é pretexto para extirpar aquilo que se supõe perigoso. “Eu não preciso de uma instituição me dizendo o que é imoral. O que precisamos é de uma educação que permita que os indivíduos definam essa linha da moralidade.”


É curioso notar o discurso autorreferencial do relatório. “Não houve julgamentos subjetivos na triagem. Foram aplicados critérios rigorosamente técnicos e legais, os quais conduziram à identificação e separação do material inadequado.” É possível, todavia, ter um critério puramente técnico que categorize aquilo que é inadequado? Ou aquilo que viole uma pretensa moral de cidadão de bem? Percebemos que as palavras são usadas sempre a partir do discurso vigente. Um comunista pode ser de Fernando Henrique Cardoso ao dono de um banco, uma vez que o termo se converte em inimigo em face – adaptável a tudo e a todos.


O relatório faz questão de apontar que nenhum livro será efetivamente destruído – ainda que a palavra “descartados” tenha sido mencionada. Afinal, são bens patrimoniados e a administração seria passível de processo. As fogueiras, percebemos, não precisam ser literais. Nesse sentido, para Cristiano Engelke, sociólogo da Universidade Federal do Rio Grande e coordenador da Comissão da Verdade da Aprofurg-Seção Sindical do ANDES-SN, o ato deve ser repudiado por toda a sociedade. “Parece ser mais um, entre tantos sinais, de ameaças à nossa tão frágil democracia e à nossa liberdade.” 


O pesquisador relembra dois casos paradigmáticos, que dizem muito sobre os tempos que vivemos. O primeiro ocorreu em 2018, quando um colégio particular do Rio de Janeiro vetou o livro Menino sem Pátria, de Luiz Puntel - um dos clássicos da Série Vagalume - por "doutrinação comunista". A história lançada há mais de três décadas acompanhava um menino cuja família, perseguida pela ditadura Vargas, precisou deixar o país. O pecado do livro, ao que parece, foi atestar a história: a ditadura existiu e foi cruel.


Já o segundo ocorreu ainda em junho deste ano, quando os pais de um tradicional colégio de São Paulo denunciaram a leitura de uma adaptação em inglês de O Diário de Anne Frank como conteúdo “inapropriado“ para a leitura de alunos de 13 e 14 anos. A obra contém a íntegra de trechos que haviam sido censurados até 1991, em que a menina - que viveu por dois anos escondida dos nazistas até se tornar vítima do holocausto – escreve sobre sua genitália. No documento, pais horrorizam-se com o fato de crianças terem sido obrigadas a ler a palavra “vagina”.


Mesmo tabu perpassa todo o relatório da Fundação Palmares. A obra Pedagogia da Educação Sexual, de Claude Lejeune, é adjetivada como “francamente delinquencial”. Desta vez, o pecado é explicitado em fotos de trechos do livro, para supostamente não deixar margem para equívocos: convidar os pais a falarem com naturalidade com seus filhos de quatro ou cinco anos – quando surgem as dúvidas sobre de onde nascem os bebês e assim por diante – as palavras pênis e vagina. O livro argumenta sobre os males para uma criança crescer entendendo que aquele tema é um tabu. Os apoiadores do relatório da Palmares se viram no espelho.

 

Sociedade da censura

Os casos relembrados por Cristiano Engelke são exemplos de um processo intrínseco à censura: uma retroalimentação entre os poderes públicos e a sociedade civil que o apoia. Foram pais, conservadores, cristãos, que se mobilizaram para apontar livros como “indesejáveis”.


Também foi a partir da articulação de grupos que denúncias contra o livro infantil Enquanto o sono não vem, de José Mauro Brandt, levaram o Ministério da Educação a recolher, em 2017, mais de 93 mil exemplares da obra que haviam sido distribuídos para alunos de primeiro, segundo e terceiro anos do Ensino Fundamental das escolas públicas. A versão do conto de fadas Pele de Asno, em que uma princesa prefere morrer a se casar com o próprio pai, foi entendida pelos reclamantes como “apologia ao incesto”.


O mesmo acontecia durante a ditadura civil-militar. Muitas vezes, a denúncia que mobilizava a recolha dos livros partia de indivíduos que, fazendo-se valer das conexões pessoais, fazia a acusação chegar nas instâncias que efetivavam a censura.


Ao mesmo tempo, é o próprio governo ao reforçar um discurso censório que estimula o povo a repetir suas ações. Marca dos governos anti-democráticos, a censura foi prática de estado em governos fascistas. Para Maria Luiza Tucci, o que vemos hoje no Brasil é um lastro do fascismo histórico. “Uma censura em nome da moral e bons costumes, uma tentativa de higienizar ideias e que pressupõe controle dos corpos, estimula nas pessoas o medo. Gera uma tentativa de disciplinarização da sociedade brasileira.”

 

Literatura sem partido?

Ainda no relatório da Palmares, encontramos o repúdio a textos considerados ideológicos e partidários, ao mesmo tempo em que há o desejo de incorporar ao acervo obras de “importantes pensadores negros contemporâneos”, todos nomes de economistas liberais e que minimizam a questão racial.


Na discussão, encontramos os ecos de um outro projeto de cerceamento cultural e educacional: o Escola Sem Partido. Movimento político que nunca foi oficialmente estabelecido, há anos coopta apoiadores para a ideia de que escolas e universidades são antros de doutrinação. Defendem, portanto, uma educação que não seja “ideológica”, sendo esta ideologia nominalmente a de Esquerda.


Engelke reforça que é impossível pensar em uma escola ou mesmo em uma literatura sem partido. O conhecimento mobiliza sentidos, ideias, não existe descolado do mundo e nem da pessoa. Mais do que uma miopia sobre o que é ou não ideológico, há a incitação para a denúncia. “Quem nos últimos anos não se viu vigiado em sala de aula? Não pode haver a preocupação de se eu devo ou não falar em Marx. É preciso preservar a liberdade de cátedra e de pensamento dos professores.” 


Para Tucci, a imprensa tem justamente o papel de supervisionar as ações de censura. “Temos que estar atentos a essas novas lógicas de controle por um estado que maquia um falso discurso de democracia”, reflete. E finaliza: “os estudiosos do holocausto costumam dizer que a partir do momento em que se queimam livros, queimam-se homens, mulheres e crianças. Nós temos o direito de estranhamento, à resistência e, inclusive, o direito de desobedecer posturas como essas”.

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