Seminário do ANDES-SN reúne docentes de todo o país para debater os 60 anos do Golpe de 64
Mais de 100 pessoas participaram do primeiro dia do Seminário Nacional “60 anos do Golpe de 1964 - Memória, Verdade, Justiça e Reparação”, na Faculdade de Educação (Faced), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em Porto Alegre (RS). O evento, promovido pelos Grupos de Trabalho de História do Movimento Docente (GTHMD) e de Política de Formação Sindical (GTPFS), em parceria com a Comissão da Verdade do ANDES-SN, teve início nessa quinta-feira (21) e seguirá até o sábado (23).
A mesa de abertura contou com a participação de Gustavo Seferian, presidente do Sindicato Nacional e membro da Comissão da Verdade da entidade. Ele iniciou a sua fala evocando o marinheiro Marcelino Rodrigues Menezes, que recebeu 250 chibatadas na frente de toda a tripulação do navio e desencadeou em 1910 a Revolta da Chibata, que exigia o fim dos castigos corporais e melhores condições de trabalho. Seferian destacou que foi um marco importante na luta dos militares rebeldes e do povo negro brasileiro, em resposta às políticas de opressão durante a Primeira República.
O presidente do ANDES-SN também ressaltou o papel fundamental da população trabalhadora do Rio Grande do Sul, que se recuperou das dificuldades causadas por eventos climáticos extremos, e a necessidade de discutir as questões sociais e ambientais que afetam as trabalhadoras e os trabalhadores, especialmente negros, indígenas e mulheres. O Seminário, inicialmente previsto para maio, foi adiado para junho devido à grave crise social e ambiental no Rio Grande do Sul, e posteriormente remarcado para novembro devido à persistência dos danos.
Seferian reforçou ainda que lutar por uma sociedade mais justa não deve ser considerado um crime. Para ele, os verdadeiros criminosos são aqueles que atentam contra as liberdades democráticas e as condições de vida da população trabalhadora. "Lutar não é crime. E se é que a gente pode reconhecer a construção histórica e social, não apenas jurídico, político e penal, do que é o crime, por certo não somos nós que lutamos por uma outra vida, por uma forma de organização social mais justa e igualitária, em que a vida humana e outras formas de vida possam se periodizar em harmonia, que devemos ser criminalizados."
Roberta Baggio, da coordenação do Grupo de Trabalho pela implementação da Comissão da Verdade na UFRGS, refletiu sobre a resiliência de sua comunidade após a enchente em todo o estado e expressou emoção ao ver a participação no evento. A docente enfatizou a relevância da memória e do enfrentamento do legado autoritário da ditadura militar de 1964, que alimentou impeachment de Dilma Rousseff 2016 e os atos antidemocráticos nos anos subsequentes. “A nossa tradição autoritária alimentou e tem alimentado a extrema direita brasileira”.
Baggio reforçou o papel essencial das universidades na resistência à ditadura e a responsabilidade de garantir que as novas gerações conheçam essa história. "A UFRGS, que contou com estudantes e professores com papel significativo na resistência à ditadura, nunca instituiu uma Comissão da Verdade. Agora, daremos esse passo crucial no dia 10 de dezembro, para reescrever essa página da história e garantir que as novas gerações conheçam o que de fato aconteceu”, afirmou. Ela convidou as pessoas presentes no seminário a se engajarem neste processo, incentivando a comunidade universitária e sindical a apoiar a iniciativa e fortalecer a participação no evento inaugural.
Liliane Giordani, diretora da Faced, alertou que há uma geração de professores que “precisa se sentir parte de uma comunidade, trabalhar em conjunto, pois muitos estão solitários enfrentando demandas de trabalho de até 60 horas semanais. “Potencializar espaços como este, de debate e troca, é essencial. Este seminário, realizado em meio à recuperação do pós-pandemia, representa uma grande oportunidade de aprendizado, um retorno à presencialidade que traz consigo a recuperação de nossas dores”. Segundo Giordani, a faculdade tem investido no Centro de Memória para resgatar a história das professoras e dos professores e das gerações passadas.
Maria Ceci Misoczky, 2ª vice-presidenta da Regional Rio Grande do Sul e do Grupo de Trabalho de História do Movimento Docente (GTHMD), destacou a importância simbólica do espaço onde ocorre o evento, um local que acolhe as assembleias do ANDES-SN, frequentemente lotado em momentos históricos, e o registro de marcos históricos como os 180 anos da traição e do massacre dos Porongos, em novembro, que rememora a traição e assassinato de lanceiros negros durante a Revolução Farroupilha.
A diretora do Sindicato Nacional, que também integra a Comissão da Verdade do ANDES-SN, fez uma menção às e aos sindicalistas técnicos da UFRGS, falecidos em um acidente de ônibus há 30 anos, reconhecendo o impacto dessa tragédia no movimento sindical.
“Eu não posso deixar de saudar também nessa abertura o GT de História do Movimento Docente do ANDES-SN e a Comissão da Verdade do ANDES-SN, que representam esse espaço no qual recuperamos a memória, além de registrar esse processo intenso que tem ocorrido nos últimos anos de revogação de homenagens a perpetradores de crimes durante a ditadura, processo que é, em grande parte, impulsionado por GTs e por sindicalizados em seções do ANDES-SN.”
Troca de experiências
Logo em seguida, foi realizada uma oficina dedicada ao compartilhamento de experiências e à formulação de ações práticas para fortalecer a criação de comissões da verdade e a retirada de homenagens a apoiadores do regime militar em universidades e institutos federais.
A oficina destacou exemplos de universidades que avançaram na recuperação da memória histórica, como a Universidade Federal de Pelotas (Ufpel), que revogou títulos honoríficos concedidos a figuras como o ex-presidente Emílio Médici e o ex-ministro da Educação Jarbas Passarinho. A Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) também foi citada por ter promovido desomenagens a Médici. Foram abordados, ainda, casos de resistência, como o da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), onde a comissão da verdade local não pôde prosseguir devido à interferência militar e questões políticas. Em outras universidades existem ainda iniciativas como a diplomação simbólica de estudantes mortos durante a ditadura, que têm reafirmado o compromisso dessas instituições com a memória e com a democracia.
O evento reforçou a importância de preservar documentos históricos e depoimentos, como os acervos das Associação dos Docentes da Universidade Estadual de Campinas (Adunicamp Seção Sindical do ANDES-SN) e da Seção Sindical dos Docentes da Universidade do Rio Grande (Aprofurg), destacando a necessidade de estratégias conjuntas entre sindicatos, universidades e movimentos sociais para promover a justiça de transição. Foram apresentadas propostas práticas, incluindo a elaboração de memoriais para marcar locais de repressão e resistência, e o fortalecimento das ações baseadas no relatório da Comissão Nacional da Verdade. O caso da Universidade Federal do Acre (Ufac) também chamou atenção das e dos presentes. Com o apoio do Ministério Público Federal, a comunidade acadêmica conseguiu realizar mais de 20 desomenagens a pessoas ligadas, direta ou indiretamente, ao período de ditadura.
A oficina também ressaltou a importância de enfrentar desafios atuais, como a militarização de escolas e práticas autoritárias, e enfatizou o papel da luta sindical na construção de uma sociedade democrática. As discussões e encaminhamentos serão levados à reunião do GTHMD e à Comissão da Verdade do ANDES-SN, que será realizada na tarde de sábado (23).
Memória, Verdade, Justiça e Reparação
No período da tarde, ocorreu a mesa “Memória, Verdade, Justiça e Reparação: ontem e hoje”. Milton Pinheiro, docente da Universidade do Estado da Bahia (Uneb), refletiu sobre legado e a impunidade da ditadura empresarial-militar no país, que em quase 20 anos resultou na morte de 434 pessoas, além de prisões, torturas, exílios e processos contra milhares de pessoas.
Segundo Milton Pinheiro, a ascensão do regime não foi apenas fruto de uma "cultura autoritária", mas da articulação entre frações da burguesia interna, representada por entidades como a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) e organizações de latifundiários, em aliança com o capital internacional. Esse bloco controlava a política por meio de parlamentares e partidos que garantiam a defesa dos interesses da classe dominante.
Pinheiro destacou o papel histórico do ANDES-SN na preservação da memória, incluindo levantamentos sobre as e os docentes assassinados pelo regime. Ele critica a mídia corporativa por tentar suavizar a violência da ditadura e ocultar seu caráter de classe. Reflete ainda sobre o "intervalo democrático" de 1947 a 1964, um período de intensa luta de classes, encerrado pelo golpe de Estado que reprimiu movimentos populares, como camponeses e sindicatos.
A transição democrática, segundo o docente, foi marcada pela manutenção de estruturas autoritárias, com a Lei da Anistia garantindo impunidade aos torturadores. Também denunciou os resquícios autoritários na política atual, como o uso do artigo 142 da Constituição para justificar intervenções militares. “O movimento da anistia é ímpar no contexto brasileiro. Aqui, o assassino e o assassinado foram colocados como iguais diante da lei. Aquele que foi torturado e aquele que foi torturador estão em paridade, e isso precisa ser rediscutido.”
O docente da Uneb concluiu afirmando que a reparação histórica só será completa com o enfrentamento das estruturas de poder que sustentam essa impunidade, evitando que as violações de direitos humanos sejam normalizadas e que as bases democráticas do país continuem fragilizadas.
Suzana Keniger Lisboa, natural de Porto Alegre (RS), foi integrante da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos e enfrentou a repressão da ditadura empresarial-militar de forma pessoal e política. Em 1972, seu companheiro, Luiz Eurico Tejera Lisboa, foi assassinado pelo regime. Após anos de luta, Suzana conseguiu localizar o corpo de Luiz Eurico, enterrado em São Paulo. Sua descoberta, em 1979, marcou o primeiro resgate de um desaparecido político ainda durante a ditadura.
Suzana criticou a omissão de governos democráticos, incluindo os governos petistas de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, que, segundo ela, falharam em acolher os familiares e enfrentar o passado autoritário. Ela lamenta que os familiares, que foram essenciais para revelar dados sobre os mortos e desaparecidos, enfrentaram isolamento e resistência, inclusive de setores da esquerda, que temiam comprometer o processo de redemocratização.
Ela destacou os avanços limitados, como a Lei 9.140/1995, sancionada por Fernando Henrique Cardoso, que reconheceu mortes pela ditadura e criou uma comissão para analisar novos casos. Este trabalho, base para a Comissão Nacional da Verdade (CNV), ajudou a desmentir a narrativa oficial de que as mortes foram resultado de suicídios ou conflitos internos. Ela, porém, saiu da comissão em 2005, criticando a falta de acesso a arquivos e o descaso em preservar a memória histórica.
A ativista cobra respostas às perguntas que permanecem sem solução: “Onde estão os corpos? Quem matou?”. Para Suzana, não há democracia enquanto houver desaparecidos, e a luta por memória, verdade e justiça segue essencial.
Lucas Pedretti, professor da rede pública municipal de Maricá (RJ), enfatizou necessidade de expandir os debates históricos para incluir questões de classe, raça, gênero e território. Ele situa a ditadura militar brasileira como parte de uma longa tradição de violências estruturais herdadas do colonialismo e do racismo, destacando que essas práticas de repressão foram direcionadas contra populações marginalizadas, como negros, indígenas e pessoas que moram nas periferias.
Citando o filme brasileiro “Ainda Estou Aqui” (2024), Pedretti ressaltou como a narrativa da película humanizou as vítimas da ditadura e evidenciou que a violência estatal não se restringia às elites políticas, mas era, na verdade, uma continuidade das práticas já utilizadas contra as periferias. Ele lembra que episódios emblemáticos, como o assassinato do ex-deputado Rubens Paiva, só ocorreram porque os militares já estavam habituados a torturar e interrogar presos nas favelas.
Segundo o professor, as incinerações de corpos de militantes políticos nos fornos da Usina Cambahyba, no Rio de Janeiro, só foram possíveis por ser um espaço já utilizado para desova de corpos de “criminosos comuns”. Pedretti ressaltou que essas táticas de repressão e eliminação foram desenvolvidas e normalizadas ao longo de séculos, baseando-se em recortes de raça, território e classe, e posteriormente apagadas da historiografia oficial. "A ditadura só é capaz de assassinar Rubens Paiva impunemente porque, historicamente, o Estado brasileiro assassinou impunemente moradores de favelas, moradores de periferias, a população negra, os povos indígenas, os trabalhadores do campo."
Sentido de classe do golpe de 1964 e da ditadura
Após a realização da mesa, ocorreu a conferência "O sentido de classe do golpe de 1964 e da ditadura: um debate necessário, em tempos de neofascismo". Gilberto Calil, 1º vice-presidente da Regional Sul e integrante da coordenação do GTHMD do ANDES-SN, contextualizou o período ditatorial abordando o intervalo entre 1930 e 1964, caracterizando-o como um projeto burguês nacional de democracia restrita, marcado por limitações às liberdades democráticas.
A hipótese central apresentada pelo docente, alinhada a diversos autores, é a de que o golpe de 1964 no Brasil foi resultado de uma articulação ampla e sistemática entre setores civis e militares, associações da sociedade civil e entidades de classe representativas dos interesses da burguesia. Essa articulação visava viabilizar uma nova etapa do capitalismo brasileiro, marcada por transformações profundas, e não apenas pela preservação da situação vigente.
De acordo com Gilberto Calil, o golpe de 1964 foi impulsionado pela crise do populismo e pelas tensões geradas por reivindicações trabalhistas, reforma agrária e mobilizações sociais que ameaçavam os interesses das classes dominantes. A solução escolhida foi a imposição de um modelo econômico dependente de capitais externos, com repressão às trabalhadoras e aos trabalhadores e o desmonte de conquistas sociais, algo que só seria viável sob uma ordem repressiva.
Em sua apresentação, Calil questionou a ênfase exclusiva no número de 434 pessoas mortas e desaparecidas, oficialmente reconhecidos pela Comissão Nacional da Verdade, reivindicando que se denuncie também os 1.196 camponesas e camponeses assassinados e os mais de 8.000 indígenas mortos, além de avaliar que o impacto da ditadura se expressa também nas cerca de 50 mil pessoas presas por motivos políticos apenas nos primeiros meses do regime, das quais 20 mil foram torturadas, além de centenas de processos judiciais instaurados.
O diretor do Sindicato Nacional fez um alerta sobre as publicações que minimizam as ações repressivas, transferindo responsabilidades para a esquerda ou tratando a ditadura como resposta a um "golpe iminente" da esquerda, além de criticar o revisionismo histórico que descreve a ditadura como improvisada e com apoio popular.
Para ele, a análise crítica do período é essencial para compreender o legado autoritário no Brasil.